quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

ENTRO EM 2011

Entro em 2011
sem carregar montanhas
e pedras.

Para que preciso de pedras
montanhas
ilhas
segredos?

Entro em 2011
de alma leve.
Nada de trazer
bagagens extensas
de memórias
amargas.

Entro assim
sem pesos
ancestrais.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O BARQUEIRO

O velho barqueiro
perdeu o barco
na tempestade
em alto mar
e com dois remos
quebrados
rumou até a praia
onde chegou
morto
mas realizado
por não ter desistido
da aventura
de ir até o fim das suas forças
e do seu percurso.

NENHUM POEMA É UM PRATO FEITO

Nenhum poema é
um prato feito
ou cheio
antes de ser escrito.

É um prato vazio
para colocar dentro
salada de palavras
versos com azeite
e alguma carne
temperada.

O poema só será prato cheio
depois de escrito e lido
digerido ou não digerido.

Por mais indigesto que seja o poema
deve ser degustado
como se degusta
um peixe
uma fruta
um queijo brie
ou uma feijoada.

Não se deve devorar o poema
sem mastigá-lo
e percebê-lo
em toda a sua orgânica
natureza
de ser vivo
que é capaz de resistir
principalmente
a quem tem mais fome
e sede
de poesia.
Os que passam pelo poema
como se fosse um desconhecido
continuarão com o prato vazio
e nunca preencherão os seus sentidos
com as vozes do poema
líquidas e sólidas
os vapores que nascem dele
e se dispersam no ar
como aromas insondáveis
e perenes.
Cada leitor tecerá o poema escrito
a partir de seu próprio tato, olfato
e capacidade de ouvir o seu som
lá no fundo da terra
e nas profundezas do universo.

TUDO O QUE ELA QUERIA NA VIDA

Tudo o que ela queria na vida
era ter um filho.
No primeiro casamento
não deu certo
porque o marido era estéril.
Divorciou daquele que ela dizia
ser a grande paixão da sua vida
e se casou com o vizinho
que ela considerava um chato
um pobretão
e que babava por ela desde
os sete anos de idade.
A criança nasceu
ela logo se cansou
de amamentar
e disse para o marido
que não iria deixar o emprego
por causa do filho
e que ele ficasse em casa
cuidando do bebê.
O marido saiu do banco
onde era caixa
e virou um trocador de fraldas
profissional.
Ela se cansou dele e do filho,
mudou de cidade
de emprego
e disse que havia descoberto
que não tinha vocação
nem para esposa
nem para mãe.
Viveu sozinha a partir de então
e hoje se diverte
à noite fazendo amigos
no Facebook.
Já tem uns duzentos.
E pretende aumentar mais e mais a sua coleção.

CACHORRO QUENTE

Conheço um sujeito
que é viciado em cachorro quente.
No almoço come dois,
à tarde mais um
e na hora da janta
come um cachorro quente de prato
com garfo e faca.
Nunca pensei que existisse uma pessoa
que comesse praticamente a mesma coisa
todos os dias.
No café da manhã?
Salsicha no molho
cortada em vários pedaços.

O INIMIGO DIÁRIO

Lutamos contra inimigos
diários.
Se não temos um pequeno inimigo
ao nosso alcance
reclamamos da falta desses inimigos necessários.
Às vezes o inimigo
é um imposto que chega pelo correio
e que é maior do que imaginávamos.
Pode ser também uma dor de dente
ou na coluna.
Se não tivermos inimigo nenhum de plantão,
inventaremos um
porque essa é a nossa especialidade.

POEMA DE PÓS-NATAL

Comeu peru demais no Natal.
Nunca pensou que pudesse comer
praticamente um peru inteiro.
Mora sozinho.
Fez uma ceia para si mesmo.
Tomou uma garrafa de coca
dois litros
porque não bebe álcool.
Tem sonhado toda noite
que está comendo um peru
gigantesco
que quanto mais ele come
mais aumenta de tamanho.
Chegou a pensar em ir
a um psicólogo
mas preferiu esperar
o peru do seu sonho
se dissolver com o tempo.
Peru nunca mais.
No Natal do ano que vem
pensa em comer bacalhau
ou pernil.
Nada de peru ou chester.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

ESTAR NO NATAL

Estar no Natal só um décimo?
Estar no Natal só um quinto?
Estar no Natal só um terço?
Estar no Natal só a metade?
Estar no Natal ganhando presentes?
Estar no Natal comprando presentes?
Estar no Natal comendo peru?
Estar no Natal com o cartão de crédito na mão?

Estar no Natal
é penetrar no seu significado
no que ele representa
não passar pelo Natal
como um robô vestido de Papai Noel
acenando para o vazio
sem saber o motivo.

Estar no Natal
é romper as fronteiras
de si mesmo
e das próprias defesas
e reconhecer-se renascido.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O Grafiteiro

Ele nunca foi um pichador,
mas um grafiteiro.
O que ele faz é arte.
Acontece que escrever nunca
foi o seu forte.
No vestibular da Unesp
caiu justamente o tema:
grafite: entre o vandalismo e a arte.
Deu um branco nele.
Em vez de escrever
fez um desenho
como se fosse um grafite.
A redação não saiu.
Mas bem que o desenho
poderia se transformar
em um grafite
em um daqueles muros sem graça
brancos
que não expressam
arte nenhuma.
Vestibular só no ano que vem.
Grafites
ele quer fazer vários
para desestressar.
Vestibular nunca foi a praia dele.
Grafite é.

domingo, 19 de dezembro de 2010

A MECÂNICA DO ACASO

Escrevo este poema agora
aqui no computador.

Em seguida imprimo uma cópia
e a deixo em um banco de jardim.

Um pombo pousa neste meu poema
e faz cocô.

Um homem magro e alto
de uns setenta anos
-com cuidado para não se sujar-
lê o poema em voz alta
e se diverte
de ter sido retratado no poema
que ele está lendo
sentado no banco
sem imaginar
essa mecânica estranha
e incrível do acaso.

sábado, 18 de dezembro de 2010

UM HOMEM, UM BAR, UMA CERVEJA

Um homem tomava uma cerveja
com amigos
em um bar em São Paulo.
Entre um gole e outro
entre uma conversa e outra
um carro desgovernado
invadiu o bar
e matou o homem
que tomava uma cerveja com amigos
às 22 horas e trinta minutos
da última quarta-feira.
O momento feliz
se tornou infeliz para sempre.
O nome dele era Jean,
mineiro de Itajubá,
biólogo
e juiz da Associação Brasileira
de Cavalos Quarto de Milha.
Em poucos segundos,
o homem que se chamava Jean
perdeu o trabalho
a vida
os sonhos
o futuro
porque um carro desgovernado
invadiu um bar
em São Paulo
sem que ninguém pudesse
avisá-lo a tempo
que um carro iria entrar ali
e desfazer a sua vida.

VOCÊ SE RECUSA A SAIR NA CHUVA

Você se recusa a sair de casa à noite
em tempos de chuva.
Trabalhar com chuva pode.
Você diz que é a sua obrigação.
Sair para se divertir na chuva não.
Aí você espera noite de lua cheia
e quando ela acontece
você prefere assistir àquela novela
que é igual a todas as outras
suas velhas conhecidas
com nova roupagem.
Mas como você perdeu o hábito de sair de casa
qualquer motivo serve
para demovê-lo
do prazer de encontrar os amigos
tomar um chope
e jogar conversa fora
como você fazia antes de culpar a chuva
por se trancar em casa
como se fosse um prisioneiro.

TUDO É PALAVRA

Tudo é palavra.
Mesmo quando não se está dizendo nada
naquele silêncio
que toma a sala
a casa
os quartos
a cidade
o mundo
há pensamentos gritando
dentro das nossas cabeças.
No princípio, no meio e no fim
tudo se resume a palavras.
Seremos só um vocábulo?
E quando perdermos o próprio nome
a identidade
e a memória
que palavra nos identificará?